Pesquisadores da Embrapa idealizaram um conjunto inovador de parâmetros, coeficientes e estratégias para o manejo eficiente e sustentável da irrigação de cana-de-açúcar cultivada no Cerrado. Trata-se do Protocolo BRCana, uma prática agropecuária de manejo de irrigação para produção de cana-de-açúcar cultivada naquele bioma. O objetivo é verticalizar a produção, reduzir o custo por tonelada e a suscetibilidade ao déficit hídrico acentuado pelas mudanças climáticas. As técnicas ainda aumentam a sustentabilidade da produção de cana-de-açúcar, por reduzir a demanda de terra e de água, inclusive como menor pegada hídrica do que na produção de sequeiro.
A tecnologia recomenda o manejo da irrigação de cana-de-açúcar pelo método combinado, que adota o método via clima como base, mas conjuga a umidade do solo e o sensoriamento da planta como camadas adicionais de informação e aferição. Recomenda ainda parâmetros customizados com foco na maior eficiência do uso de água e na economicidade da produção de cana no Cerrado, incluindo o manejo nas fases de crescimento e maturação (drying-off, em inglês).
De acordo com o pesquisador da Embrapa Meio Ambiente (SP) Vinicius Bufon, “o BRCana tem o diferencial de ser um referencial técnico inédito, com protocolo sólido e amplo para adoção de sistema irrigado de produção no Cerrado, que permite romper substancialmente patamares de produtividade, longevidade e eficiência de uso de água e da terra”.
A forma de se produzir cana-de-açúcar mudou radicalmente nas últimas décadas, mas ainda não havia sido desenvolvido um pacote tecnológico de produção irrigada para esse cenário. Segundo o pesquisador, a completude e a solidez da tecnologia são conferidas por dois aspectos: estabelecer os níveis de uso de água para irrigação de cana-de-açúcar que entregam uma maior eficiência e sustentabilidade desse uso e instruir como realizar o manejo de irrigação para se atingir tais níveis.
Adicionalmente, informa Bufon, o BRCana permite a redução da suscetibilidade ao aumento da frequência e intensidade das secas ocasionadas pela mudança climática global. O pesquisador enfatiza que “apesar de desenvolvida no Cerrado, a tecnologia também pode ser aplicada a outros biomas e, inclusive, outros países produtores”.
Validação do método em usinas sucroenergéticas
A prática agropecuária foi desenvolvida sob plataforma experimental de longa duração (desde 2010), grande amplitude geográfica e edafoclimática, conferindo perfeita semelhança às condições reais de produção. Segundo Bufon, todo o processo de desenvolvimento foi realizado dentro de usinas sucroenergéticas, “sob a estratégia de pesquisação (o usuário final atua como coparticipante do desenvolvimento das técnicas), o que confere elevada solidez e aplicabilidade à tecnologia”, explica. A adoção da irrigação em parte da área das usinas sucroenergéticas foi apontada como estratégia de adaptação às mudanças climáticas e incremento da sustentabilidade.
A operação de irrigação, seja salvamento ou deficitária, é complexa, tanto do ponto de vista operacional quanto técnico, sobretudo quando aplicada a culturas de ciclo produtivo mais longo como a cana-de-açúcar. O processo, em avaliação desde 2012, já escalou para uso comercial, ainda sob o acompanhamento da Embrapa, nas usinas dos grupos Jalles Machado, São Martinho, Grupo Pedra Agroindustrial, Alta Mogiana, Raizen e Santa Adélia. Com a adoção da tecnologia, a produtividade média das áreas irrigadas, em ciclos de análise de 12 anos, salta 70%, de 71 toneladas de cana por hectare (t/ha) para 120 t/ha.
Cenários da produção irrigada
O agravamento da crise climática, com prognóstico de eventos de seca mais frequentes e intensos, gera como consequência acentuação dos riscos para a segurança alimentar. Nesse contexto, políticas nacionais e organismos internacionais apontam a produção irrigada, conduzida de forma eficiente e sustentável, como uma das ferramentas de mitigação de mudança climática e suporte à segurança alimentar.
Para demonstrar que a produção irrigada auxilia na mitigação das mudanças climáticas e aumenta a eficiência ambiental da produção sucroenergética, Bufon realizou um exercício da visão do padrão de sustentabilidade que se deseja nas usinas, por meio da adoção de irrigação como estratégia de adaptação às mudanças climáticas.
Ele enfatizou que a adoção da estratégia não requer irrigar a maior parte das áreas, e nem a adoção de irrigação plena – que atende a 100% da demanda hídrica da cana. Como alternativa, indicou dois caminhos. O primeiro é a irrigação de salvamento, uma estratégia que entrega apenas de 3% a 4% de toda demanda hídrica da cultura, mas garante a brotação do canavial nas condições de déficit hídrico severo, assegurando a longevidade adequada, mesmo após anos de seca severa.
A outra estratégia apresentada foi a irrigação deficitária, por gotejamento ou pivô. Chama-se deficitária porque entrega apenas de 15% a 35% da demanda hídrica total da cana, mas com grandes efeitos na produtividade, longevidade, eficiência de uso da terra, redução de custo da tonelada de cana, além da redução da demanda de corretivos, fertilizantes e diesel para produzir cada tonelada da cultura.
Considerando dados reais de uma usina na região de Ribeirão Preto, SP, com moagem de aproximadamente 5 milhões de toneladas, o pesquisador apresentou dois cenários de adaptação às mudanças climáticas. No primeiro, 32% da área da usina receberiam irrigação, sendo 5% com irrigação deficitária de gotejamento, e 27% com irrigação de salvamento. No segundo cenário, considerou-se adoção da irrigação em 45% da área, sendo 8% com irrigação deficitária e 37% com irrigação de salvamento.
No primeiro cenário, o estudo evidenciou aumento de aproximadamente 10% na eficiência de uso da terra, com economia de custo de formação de canaviais e viveiros da ordem de R$ 26 milhões por ano, enquanto no segundo cenário, a eficiência do uso da terra aumentaria aproximadamente 20%, com economia de R$ 42 milhões em custo de formação de canavial por ano. No primeiro cenário, a pequena fração irrigada conseguiria aumentar 3,9% a produtividade média de toda usina, e 15% a longevidade, enquanto o segundo cenário aumentaria 4,2% a produtividade e 21% a longevidade do canavial.
Os 32% de área irrigada no primeiro cenário lastreariam o risco climático de 49% da moagem própria, e 36% da moagem total, incluindo a cana de fornecedores. No segundo cenário, os 45% de área irrigada lastreariam 66% da moagem própria e 50% da moagem total da usina contra riscos climáticos.
No primeiro cenário, uma redução de 12% do raio médio traria economia de R$ 12 milhões por ano no custo de transporte e, no segundo cenário, 17% de redução de raio médio traria economia de R$ 17 milhões, além de toda redução das emissões de dióxido de carbono (CO2) do diesel utilizado no transporte. Bufon ainda evidenciou uma economia de 14%, 13%, 6%, 4% e 7% no consumo de calcário, gesso, fósforo, nitrogênio e potássio, por tonelada de cana produzida, respectivamente, além de 6% de diesel e 7,8% de etanol e gasolina.
No cenário 2, as economias saltam para 19%, 18%, 8%, 6% e 10% no consumo de calcário, gesso, fósforo, nitrogênio e potássio, por tonelada de cana produzida, respectivamente, além de 7,7% de diesel e 10,2% de etanol e gasolina.
Bufon também mostrou que, se a usina optasse pela expansão em novas áreas (expansão horizontal) ao invés desse investimento na verticalização por meio da irrigação da menor fração de suas áreas, no cenário 1, seria necessária a adição de 6.900 ha de terra. O custo de formação de canavial associado a essa expansão horizontal seria de, aproximadamente, R$ 110 milhões de reais.
Essa alternativa ainda implicaria a perda de todas as eficiências de uso da terra, redução de custo de formação de lavoura, de viveiros etc. Isso ainda só seria possível se houvesse terra disponível na região da usina. Se a disponibilidade de terra para expansão fosse em terras piores e mais distantes, quantidade ainda maior que 6.900 ha seria necessária, e a demanda de insumos e combustível por tonelada de cana também aumentaria. No cenário 2, a demanda de expansão horizontal seria de 9.900 ha, com custo de formação de canavial de, aproximadamente, R$ 158 milhões.
“Para os propósitos da técnica agropecuária em questão, se adotada com parâmetros e estratégias corretas, e sob bom arcabouço de regulação e gestão para o uso racional dos recursos hídricos nas bacias, a produção irrigada é mais sustentável e eficiente do que a produção de sequeiro”, salienta Bufon. (Da Embrapa)
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