Criada em 23/04/2024 às 09h07 | Agronegócio

CiCarne: Crise de mão de obra no campo: causas, impactos e possíveis soluções

O setor pecuário brasileiro enfrenta escassez de mão de obra qualificada devido à migração urbana e condições de trabalho desfavoráveis. A solução inclui tecnologia e capacitação, visando sustentabilidade e eficiência. Ações conjuntas são essenciais para garantir o futuro do setor.

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O setor pecuário brasileiro enfrenta escassez de mão de obra qualificada devido à migração urbana e condições de trabalho desfavoráveis. (Foto: Divulgação)

O setor pecuário brasileiro desempenha um papel crucial na economia do país, não apenas como um dos principais fornecedores de carne bovina, suína e de aves para o mundo, mas também como sustento de milhares de famílias que dependem diretamente da atividade rural para sua subsistência. Contudo, este setor enfrenta um desafio crescente que ameaça sua sustentabilidade e eficiência: a escassez de mão de obra qualificada. Frequentemente referido como "apagão de mão de obra", este fenômeno tem múltiplas causas, que vão desde a urbanização acelerada até as condições de trabalho no campo, e traz impactos significativos que necessitam de atenção imediata. Neste cenário, conforme já identificado pela Embrapa(1), um dos grandes desafios do pecuarista é a contratação de mão de obra qualificada. Geralmente os trabalhadores rurais, conhecidos como peões de fazenda, vaqueiros ou capatazes, infelizmente, são pessoas que têm pouco grau de instrução e baixa escolaridade. Este boletim explora as causas, impactos e possíveis soluções para essa questão crítica, visando elencar caminhos para a resiliência e o crescimento futuro do setor.

Causas do apagão de mão de obra

A crescente urbanização é uma tendência global, resultado do crescimento da população urbana, expansão urbana (ou seja, reclassificação de áreas rurais para urbanas) e migração de áreas rurais para urbanas. Esse processo está sendo rápido em todo o mundo e é visível quando se observa que a parcela urbana da população mundial aumentou de 30% em 1950 para 57% em 2021. Estima-se que chegue a 68% até 2050. Na maioria das regiões do mundo esse fenômeno tem sido impulsionado pela transformação estrutural, que envolve uma transformação econômica de predominância agrícola para uma economia nacional mais diversificada, atraindo assim pessoas de áreas rurais para urbanas.

No Brasil essa mudança afeta profundamente o setor pecuário brasileiro, com mais de 85% da população do país residindo atualmente em áreas urbanas. Em 2023 em comparação com o ano anterior, houve diminuição de 5% na população ocupada na agropecuária brasileira (setor primário, envolvido na produção), o que equivale a 432,99 mil pessoas a menos. No caso da bovinocultura também foram observadas reduções no mesmo período de -2,7%, o que corresponde a 55.090 trabalhadores a menos. Essa diminuição vem ocorrendo gradualmente, em 2012 eram 10,23 milhões de pessoas no setor primário do agronegócio brasileiro e em 2023 esse número caiu para 8,25 milhões. Uma diminuição de 19,35% em 10 anos que equivale a 1,98 milhões de trabalhadores a menos.

Esta migração em massa para as cidades é motivada pela busca por melhores oportunidades de emprego e acesso a serviços como educação, saúde e melhores meios de comunicação, deixando o campo cada vez mais desfalcado de mão de obra. Paralelamente, a população que permanece nas áreas rurais está envelhecendo e a falta de qualificação se torna uma barreira ainda maior, pois impede que esses trabalhadores adotem técnicas agrícolas modernas e eficientes. Além disso, as condições de trabalho no campo, muitas vezes caracterizadas por longas jornadas em condições climáticas adversas e com remuneração baixa, tornam a carreira no setor rural pouco atrativa para as novas gerações. A agricultura, mais tecnificada, mecanizada e melhor remunerada, acaba absorvendo a escassa mão de obra mais qualificada existente. Essa combinação de fatores contribui significativamente para o "apagão de mão de obra" no setor pecuário, um problema que ameaça tanto a sustentabilidade quanto a eficiência desse setor.

Impactos no setor pecuário

O resultado que encontramos hoje é a existência de trabalhadores desqualificados que estão há muito tempo tocando suas culturas ou prestando serviços do mesmo modo como antigamente. Sem falar naqueles milhares que desistiram da atuação rural para enfrentar a vida profissional urbana. Outro ponto que merece destaque para esse cenário é a desvalorização da mão de obra no campo, que impede o crescimento competitivo do agronegócio, que depende justamente de trabalhadores capacitados. De maneira geral, a falta de mão de obra qualificada é um grande desafio para a eficiência operacional em fazendas. A gestão inadequada dos rebanhos, seja por falta de pessoal ou de habilidades específicas, pode levar a um manejo deficiente da fazenda. Isso inclui alimentação irregular, falhas no controle sanitário e ineficiências na reprodução, o que potencialmente aumenta a vulnerabilidade dos animais às doenças e afeta a qualidade do produto final. Além disso, a escassez de trabalhadores qualificados pode forçar os proprietários de fazendas a investirem na contratação de mão de obra temporária, que muitas vezes é mais cara e menos eficiente. A necessidade de pagar horas extras torna-se uma prática comum, aumentando os custos de produção. Esses custos adicionais reduzem a margem de lucro e podem comprometer a competitividade no mercado global. A falta de mão de obra também pode complicar as operações logísticas, com menos trabalhadores disponíveis para o transporte de animais e produtos, aumentando o tempo necessário para a movimentação de mercadorias, o que pode comprometer o frescor e a qualidade dos produtos pecuários entregues ao mercado.

Tecnologia como solução parcial

A introdução bem sucedida de sistemas automatizados e robóticos no setor pecuário oferece uma solução eficaz para a escassez de mão de obra, além de aumentar a eficiência e a precisão das operações. As tecnologias-chave incluem sistemas de ordenha robótica, que permitem a automatização do processo de ordenha, reduzindo a necessidade de mão de obra e aumentando a eficiência da produção leiteira. Fazendas que adotam a ordenha robótica relatam um aumento significativo na produção de leite e melhorias na saúde animal, graças ao monitoramento constante que esses sistemas proporcionam. A coleta de dados, como o peso do rebanho, fica muito mais fácil e preciso com o uso de dispositivos eletrônicos. Além disso, existem sensores eletrônicos que monitoram o ambiente e geram dados sobre as condições do local, como temperatura, vento, luz e umidade. Tudo isso para proporcionar mais conforto ao animal e facilidade para o funcionário. O uso de drones equipados com câmeras térmicas para monitoramento aéreo do rebanho e das condições das pastagens é outra inovação transformadora, facilitando a detecção rápida de problemas de saúde no gado e permitindo uma gestão mais eficaz das pastagens. Sistemas automatizados de alimentação distribuem alimentação de forma automatizada e precisa, garantindo que cada animal tenha as exigências para seu desenvolvimento atendidas mais proximamente da real necessidade. Softwares avançados ajudam na integração e análise de dados variados, como condições climáticas, saúde do rebanho e produtividade das culturas, essenciais para tomar decisões informadas e rápidas, otimizando as operações diárias e permitindo uma resposta ágil a desafios que possam surgir. Estas tecnologias não apenas reduzem a dependência de trabalho físico intenso, mas também promovem uma pecuária mais sustentável e produtiva, alinhada às necessidades modernas do setor.

Estratégias de capacitação e atração

Muitos produtores já descobriram pessoalmente que a mão de obra rural qualificada não é algo que pode ser facilmente encontrado. Em geral, para contar com uma equipe especializada e atualizada na sua área de atuação, é preciso investir na preparação individual. Além dos cursos do SENAR, que abrangem desde gestão agrícola até técnicas específicas de manejo do solo e cuidados com animais, existem outras iniciativas significativas. A parceria entre universidades e entidades privadas tem gerado programas de estágio e residência agrícola, que permitem que os estudantes vivenciem a prática agropecuária enquanto completam sua formação. Instituições como a Embrapa têm programas que focam na aplicação de tecnologia e inovação no campo, preenchendo a lacuna entre teoria e prática. A adoção de tecnologia também tem contribuído para a melhoria das condições de trabalho. Ferramentas modernas de gestão de fazendas reduzem a necessidade de trabalho físico extenuante e aumentam a eficiência. Além disso, algumas empresas do setor têm liderado iniciativas para certificar suas operações sob normas de bem-estar animal e de sustentabilidade, que naturalmente incluem melhorias nas condições de trabalho dos empregados. Programas de qualidade de vida no trabalho, que oferecem desde aconselhamento psicológico até atividades de lazer, estão se tornando mais comuns. Existem esforços legislativos para melhorar a formação e as condições laborais no campo, como recentes alterações na legislação trabalhista rural, que visam tornar as carreiras agrícolas mais atraentes através de maior segurança jurídica e proteção social. Além disso, o governo frequentemente lança campanhas de valorização da agricultura familiar, que ajudam a atrair novos talentos para o setor e incentivam a permanência daqueles já envolvidos. Estas estratégias, quando implementadas de forma eficaz, podem ajudar a superar o desafio do apagão de mão de obra no setor pecuário, tornando-o mais atraente e sustentável para as gerações futuras. A integração dessas medidas com a tecnologia e inovação pode criar um ambiente dinâmico que não apenas retenha talentos, mas também os atraia.

Algo que merece ser destacado é que a permanência do empregado no trabalho é uma decisão pessoal derivada da ponderação de uma gama de fatores. Assim, se a pessoa tem seus direitos respeitados, percebe que o esforço de seu trabalho faz sentido e é valorizado, que há chance de crescimento profissional e pessoal (treinamentos, capacitações, promoções, etc.) e que o ambiente, com uma condição de respeito e empatia, é seguro para ele e sua família, há maior chance dela decidir-se por permanecer. Prover essas condições é, portanto, um investimento para manter bons trabalhadores, lembrando que parte deste investimento é mais comportamental do que financeiro. Por exemplo, ao ter maior disposição para ouvir seus empregados e deixá-los influir nas decisões práticas do trabalho, o que, além de valorizá-los, pode ajudar a melhorar até a consecução da tarefa.

Conclusão

A crise de mão de obra no setor pecuário brasileiro é um desafio multifacetado que exige uma abordagem igualmente diversificada para sua solução. As estratégias discutidas neste boletim, que incluem desde a adoção de tecnologias avançadas até o fortalecimento da educação e treinamento vocacional, são fundamentais para o futuro do setor. Além disso, a melhoria das condições de trabalho e a implementação de políticas governamentais de apoio são essenciais para tornar a pecuária uma opção de carreira viável e atraente para as novas gerações. Somente através de uma colaboração efetiva entre governo, instituições educacionais e stakeholders do setor será possível implementar essas soluções de maneira eficaz e garantir a sustentabilidade e eficiência da pecuária no Brasil. A hora de agir é agora; postergar essas ações só intensificará os problemas e reduzirá as chances de uma recuperação robusta e sustentável.

Autores:
Guilherme Cunha Malafaia - Embrapa Gado de Corte
Gelson Luís Dias Feijó - Embrapa Gado de Corte
Paulo Henrique Nogueira Biscola - Embrapa Gado de Corte Sergio Raposo de Medeiros - Embrapa Pecuária Sudeste Urbano Gomes Pinto de Abreu - Embrapa Pantanal Vinícius do Nascimento Lampert - Embrapa Pecuária Sul

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